Estresse é um dos vilões para a segurança no trânsito



Estamos em 1950. O personagem Pateta, aquele cachorro estabanado de Walt Disney, pega o seu carro e, ao girar a chave, transforma-se em Mr. Wheeler, um monstro que sai fazendo barbaridades no trânsito. Familiarizou-se com a cena? Pois bem, desde a época do desenho, a quantidade de carros no mundo mais que quintuplicou, e o trânsito ficou infernal em vários pontos do Brasil.

Como a estrutura das cidades não evoluiu no mesmo ritmo, os motoristas ficam dentro de seus automóveis horas a fio, em um “anda e para” cansativo, que compromete a qualidade de vida e a produtividade no trabalho. Mais: pode gerar um elevado nível de estresse em quem está ao volante. Em muitos casos, ter um carro – sinônimo de conforto, praticidade e status –, às vezes acaba representando uma espécie de confinamento, dependendo dos quilômetros e quilômetros de engarrafamentos. Mesmo assim, apesar do desgaste, a maioria prefere ficar “preso” no trânsito do que espremido em transportes coletivos.

O problema é que perder minutos preciosos no trânsito é capaz de causar uma metamorfose em motoristas, como no Pateta-Mr. Wheeler. Aí é que mora o perigo. Eles vão ficando cada vez menos cordiais uns com os outros. Segundo a psicóloga Márcia Magalhães Fonseca, em situações de estresse, o ser humano recorre a uma reação básica, que pode ser o medo, a fuga ou a luta. Algumas pessoas escolhem o medo: interiorizam o estresse e somatizam sintomas que explodem de uma hora para outra, transformando-se em problemas de saúde sérios, como depressão e baixa no sistema imunológico.

Outras preferem a fuga. Desistem de vez dos carros ou se resignam e acabam achando normal sair de casa duas horas antes do horário previsto para percorrer, por exemplo, 30 km. Em um primeiro momento, parece a iniciativa mais adequada não lutar contra essa realidade. Mesmo assim, esse comportamento trará problemas, como a queda drástica na qualidade de vida.

A reação mais perigosa e, infelizmente, a mais comum é a luta. A psicóloga Márcia Magalhães conta que o lado egoísta do ser humano é usado como um recurso para a violência. A pressão para não chegar atrasado no trabalho, voltar para casa ou não  perder compromissos desencadeia o comportamento verificado hoje nas ruas. Faz lembrar o filme “Um dia de fúria”, em que o personagem vivido por Michael Douglas chega ao limite da tolerância em um congestionamento e começa a agir com um bastão de beisebol. “A situação de estresse do trânsito acirra o nosso lado animal e carrega uma dose diária de adrenalina que nem sempre temos condições de suportar”, afirma.

Essa situação de estresse é reforçada por Bruno Lana, motorista profissional do Rio de Janeiro. Como precisa rodar pela cidade inteira, todos os dias ele se depara com horários de pico e ainda enfrenta as complicações de conseguir uma vaga para estacionar, outro grande problema nos centros urbanos. “Escuto música, vejo e-mail no celular, leio revistas, e os carros não andam. Às vezes dá vontade de abrir a porta e sair correndo”, diz.

O trajeto diário de Bruno compreende uma distância de 34 km para chegar ao trabalho, a sede de uma empresa offshore. O tempo de viagem, que deveria demorar menos de uma hora, chega a duas horas e meia nas sextas-feiras, um tempo assustador e que tem tudo para piorar. Afinal, não há em curso obras de alargamento viário em nenhuma das capitais, e o governo ainda não discutiu seriamente uma real solução para o problema.

TOLERÂNCIA ZERO
O Ministério das Cidades garante que está ciente do problema, mas que trabalha com um meio termo entre o incentivo à compra de carros – que aquece a indústria e cria empregos – e a redução do fluxo de veículos nas ruas. “A indústria automobilística é geradora de postos de trabalho e renda e, por isso, é incentivada pelo governo federal. Mas nosso objetivo é convencer até mesmo famílias com mais de dois carros a usar o transporte público”, diz o secretário nacional de Transporte e Mobilidade Urbana, Luiz Carlos Bueno de Lima. Enquanto isso não ocorre, cerca de 9.500 carros são vendidos por dia no Brasil, criando uma situação que tende a ficar insustentável.

Todas essas transformações e questões econômicas novamente se voltam para a pergunta central: e como o motorista fica nessa história? Preocupadas com a queda de produtividade que o estresse no trânsito vem causando, algumas empresas estão introduzindo novas práticas de trabalho. Mostram-se mais flexíveis e buscam soluções que permitam ao profissional trabalhar mais próximo da sua residência.

Segundo Julyana Felícia, gerente de RH de uma rede de alimentação, o trabalho remoto e o horário flexível podem oferecer uma trégua na rotina de quem encara o trânsito nas grandes cidades. “O principal problema na vida profi ssional”, diz a gerente, “é que a pessoa que sofre com congestionamentos chega no local de trabalho estressada e irritada, diminuindo sua capacidade de tolerância diante das diversas situações que ocorrem no cotidiano”. “A produtividade fica afetada e os reflexos do trânsito são vistos na saúde e no estado de espírito dos funcionários”, revela Julyana.

A empresária Regina Loureiro concorda. Obrigada a cruzar todos os dias a Ilha do Governador, bairro do Rio de Janeiro, até Duque de Caxias, município na Baixada Fluminense, pela Linha Vermelha, ela salienta que é muito difícil manter a calma quando os automóveis não deslancham, espremidos nos engarrafamentos. “Chego no trabalho irritadíssima e às vezes um erro tolo de um funcionário é o bastante para explodir”, confessa.

Especialistas apontam o estresse psicológico do trânsito como a causa da maioria do problemas que enfrentamos nas ruas. A reação normal é a busca por sensações, o que geralmente supera a lógica e o bom senso. É nesse ponto que surgem as ultrapassagens perigosas, o excesso de velocidade, a disputa com o carro ao lado e, em casos mais extremos, o consumo de drogas e álcool enquanto se dirige. Se nada for feito, o trânsito caminha para se tornar um caso indireto de saúde pública, ainda sem solução. Enquanto isso, muitos Mr. Wheeler continuarão soltos pelas ruas.

Fonte: Carro Online

Comentários

Postagens mais visitadas